quarta-feira, 23 de novembro de 2011

NILSON BARCELLI - POESIAS






O parto






Vou procriando embriões de palavras,
que verto a tentar não perder o fio ao enredo,
mas tenho um parto atribulado.


Levanto o prematuro, limpo a placenta
e dou-lhe duas palmadas no rabo.
Provo-lhe a semente do grito primevo
enquanto devoro baforadas de vácuo prenhes de fumo.


Alfaiate e parteiro, dou uma tesourada de pai indeciso
no cordão umbilical
e lavo o filho de sangue em mil ideias com asas.


Coso a boca às feridas, refino pensos,
mas atrapalho-me com nuvens de pó de talco
e quase deixo escapar os versos convalescentes
pelo cano da incubadora.


Recomeço, uma e outra vez,
até que as dores da aparição se desenruguem
e Morfeu o não ache nado-morto
para estágio em colchão de sono breve.


De candeia em punho,
percorro esquinas e vielas do poema
até projectar o mapa do seu corpo na retina
para radiografar as ideias ulceradas a intimar cirurgia.


Do esboço inicial, a martelo e a cinzel,
passo à transpiração burilada
na paciente finura das formas.


Certas palavras, ao sentir o bisturi da coerência
a bordar a pele, espetam agulhas
nas pernas de outras palavras para que fujam à dor
e plasmam novas palavras com pinças e ligaduras
num corpo exausto de próteses.


Aceitável o filho, agora com malformações
quase só perceptíveis aos olhos do mestre,
penduro-o na parede e abandono-o.


É teu.




Nilson Barcelli © Outubro 2011






Amanhã






Amanhã,
quando o poema invadir os teus braços
e percorrer inteiro as veias do teu corpo,
será nas mãos que revelarás
a percepção do desejo
que há na luz do teu olhar.


Acordarás, então,
a perfeição dos teus seios
e a ternura inundará a tua pele,
moldando-te a voz
em timbres que julgavas esquecidos
nas palavras da memória submersa.


Haverá,
nesse tempo de rosas, bandos
de andorinhas perfumadas no teu rosto,
mas não será minha essa virtude,
já que me darei em silêncio
para não paralisar a beleza do teu voo.




Nilson Barcelli © Outubro 2011






A luxúria das palavras






Há em ti
palavras que fecundam os sentidos,
onde as cores
dos mares que te habitam
reproduzem braços quentes
que me concebem.


Há em ti
palavras que se abrem no regaço
e se afundam no meu sorriso
de pássaro cinzento,
colorindo as sementes
espalhadas pelos vales do teu corpo.


Há em ti
palavras que se despem
na loucura que os meus olhos restituem,
vestindo-te do vinho
que bebemos
na taça da luxúria das palavras.




Nilson Barcelli © Agosto 2011






Palavras mutiladas






Se o que eu digo fosse arte,
não seria de censura
o nó que me confina a liberdade.


Nem sentiria
a ardência do vinagre
nas feridas abertas da ausência.


A luz
[que me fere como um laser]
teima em cortar
a audácia dos meus dedos.


E saem de espinhos
encravados na garganta
as palavras mutiladas que sufoco
e que não ouves.


Nilson Barcelli © Agosto 2011






O equinócio da Primavera nos teus olhos






É frequente
dar comigo
entre o festim de chamas
no limite do teu corpo
e os vestígios plasmados
que ainda restam de ti
na pele da concórdia matinal.


Visto-me
de uma insónia tão curvilínea
como os teus seios
e de uma dormência tão perfeita
como a ternura das carícias
que os teus dedos
me fazem no cabelo.


Enquanto dormes,
fujo para dentro de mim
e consigo ver
o equinócio da primavera
nos teus olhos.




Nilson Barcelli © Maio 2011






O poema






O poema, quando é poema
[com o dissecar da vida e da morte,
e de outros variados pretextos]
recompõe a invenção da realidade
para anotar e apurar a claridade das coisas.


O poema, quando é poema,
na demora das madrugadas sombrias,
vê o amor, rutilante, a tecer hálitos de sol
nos ditames selvagens das palavras.


O poema, quando é poema,
é um desafio, gritante, à bem-aventurança
que há no sair do abismo
ou à liberdade que existe
na firmeza de deixar o que não vem.


O poema, quando é poema,
nunca é um tiro de chumbo disperso,
a contento, inútil e comezinho,
é uma arma de bala real, de senso letal,
para atingir e marcar o pensamento.




Nilson Barcelli © Fevereiro 2011








Entrevista - Nilson Barcelli


NILSON BARCELLI - ENTREVISTA Nº 13




EntreGêneros: Que águas o levaram ao fluir poético? Em que fontes mata sua sede e busca  inspiração?

NB: Comecei a tentar fazer poesia em 2005, depois de quase 2 anos de blog, porque me pareceu que gastaria menos tempo do que contar histórias ou fazer textos de opinião social e política como até então vinha a fazer. Nunca tinha feito antes, mas lia muitos poetas, principalmente o Fernando Pessoa nos seus diferentes heterónimos. As principais fontes de inspiração que tenho são o amor e a intervenção social ou política.

EntreGêneros: Relembrando o estudo da poética de Aristóteles, quanto aos termos mimesis e Katharsis, a poesia seria uma representação do mundo sensível, visando a catarse destas emoções, idéia que encontra ressonância em muitos poetas. Como esse fato se aplicaria a você?  O que é ser poeta para você e   que sua poesia tem de confessional?

NB: A minha poesia é mais racional do que emocional, muito embora possa não parecer assim ao leitor e ainda que, no essencial, eu escreva sobre emoções. Portanto, não tem em vista a catarse das minhas emoções. Resumindo, é quase só suor e pouquíssima inspiração, sendo cada poema construído na exploração das mil e uma possibilidades que a língua portuguesa tem.

EntreGêneros: Os medos, como do silêncio e do escuro, são universais. Através da escrita, o poeta interrompe o silêncio, faz ouvir a sua voz. Como você lida com o silêncio da folha (ou tela) em branco. Já sentiu algum tipo de bloqueio para escrever?

NB: Só sinto bloqueios antes de começar a escrever. Depois de iniciar um poema, as palavras e as ideias vão puxando outras palavras e outras ideias. É um processo que envolve muitas tentativas e retrocessos, podendo demorar várias horas, muitas vezes distribuídas por vários dias. Quando termino, sinto sempre a necessidade de mais alterações. Mas não continuo porque o céu é inatingível, ainda que devamos fazer todos os esforços para lá chegar...

EntreGêneros: No site do poeta Marcel Angel, você diz: "Também gosto das poesias de antanho...", referindo-se a forma poética denominada soneto.  O que você pensa de um dos elementos mais enfraquecidos pela literatura contemporânea e até que ponto sentiu-se influenciado por ele em sua própria criação poética?

NB: Não me sinto influenciado pela forma, pela rima ou pela métrica. Mas a "poesia de antanho" contém imagens poéticas brilhantes e, principalmente, uma estrutura lógica de princípio meio e fim que me fascinam e que talvez me influenciem. Para além disso é poesia filtrada pelo tempo, onde quase só os poemas muito bons ainda perduram.

EntreGêneros:  O poema intitulado Reclamação, postado em seu blog é precedido de uma referência à Fernando Pessoa. As últimas poesias postadas nos meses de Setembro e Outubro desse ano são enfáticas ao questionarem e criticarem a pessoa do "eu". Você vê uma aproximação de afinidades poéticas com Pessoa? Quem é Pessoa para você?

NB: Li quase toda a obra de Pessoa e, por isso, é natural que seja influenciado por ele, mesmo que inconscientemente.  Depois de ter escrito o Poema "Reclamação", de intervenção social, lembrei-me do poema "O Andaime" de Pessoa, que também o é, e coloquei 2 excertos desse poema de modo a criar “ambiente” para o meu poema.
A crítica que faço do “eu”, é essencialmente colectiva. A crise que atravessamos, financeira e económica, exigiria que as pessoas se organizassem em torno de objectivos comuns e os fizessem sentir ao poder político. Mas tal não está a acontecer, existindo uma passividade desconcertante. Neste aspecto os gregos estão praticamente sozinhos. Esta atitude do povo, que vai empobrecendo, a par da sobranceria do poder, é um filão e um dever para os poetas.

EntreGêneros: "É por ti que escrevo que não és musa nem deusa/ mas a mulher do meu horizonte /a imperfeição e na incoincidência do dia-a-dia ", António Ramos Rosa, in 'O Teu Rosto'. Sente-se influenciado por esse grande poeta, também conterrâneo seu, como Pessoa?

NB: Identifico os poemas de Pessoa mesmo sem terem a referência do autor. Mas isso não acontece com a poesia de António Ramos Rosa, a não ser os poemas que conheço bem. Portanto, é natural que não existam influências deste autor na minha poesia.

EntreGêneros: "O amor transforma o mundo noutra cor..." Belas palavras usadas por você ao comentar a respeito de um poema cuja temática era o amor num blog visitado. Você se diria um escritor romântico, tendo o amor como uma temática constante em seus poemas?

NB: Sou fascinado pelo sentimento amor, o qual possui um número infinito de cambiantes. Tendo sido cantado desde sempre pelos poetas, ele constitui, por isso, um tema inesgotável.
Acho que sou, na verdade, um poeta romântico. Até porque, enquanto escrevo, me sinto apaixonado pelo tema ou objecto do poema e, através disso, consigo ver o mundo doutra cor.

EntreGêneros: A figura feminina costuma ser exaltada em seus poemas, não só em seu aspecto físico, mas em seu interior, o que nos mostra sua admiração e amor pela alma feminina.  Nesse contexto, como você vê a poesia feminina? Acha que difere muito da poesia masculina?

NB: Em geral, gosto mais da poesia feita por mulheres. Isso deve ter a ver com a maior sensibilidade que elas conseguem colocar nas palavras. E talvez seja por isso que as mulheres gostam mais que os homens da minha poesia. Porque os olhos e a alma das mulheres são capazes de ver a poesia com maior amplitude que os homens.

EntreGêneros: Qual é a origem e o significado da palavra nimbypolis? O que o levou a escolher esse nome para o seu blog?

NB: O nome do blog surgiu pelo conteúdo com que o iniciei, que era a de crítica social e política. É formado por duas palavras: nimby + polis. Not in my back yard, é uma expressão idiomática americana relacionada com o ambiente, que diz que os poluentes não devem ser despejados perto de mim, ou seja, tem implícita a ideia do poluidor/pagador ou a de que quem polui é que deve resolver o problema. Com o Polis, a ideia é que esses princípios se devem aplicar à sociedade em geral e ao poder político em particular, nomeadamente nos aspectos da corrupção, má governação, etc.

EntreGêneros: Fale-nos um pouco da pessoa além do poeta, seus sonhos, seus projetos, sua vida.

NB: Comecei o meu blog para melhorar a minha capacidade na escrita, porque, sendo engenheiro, o meu currículo escolar na língua portuguesa é muito pobre. Para além disso, a minha narrativa característica vinha a ser “afunilada” pelos inúmeros relatórios que fazia, onde a capacidade de síntese é a palavra de ordem (de contrário, ninguém lê…). Foi por isso que nos 2 primeiros anos de blog fazia verdadeiras redacções…
Foi a falta de tempo que me levou a ser poeta… Pensava eu que gastaria menos tempo para fazer uns versos… Com o tempo vi que não era assim, porque para fazer poesia com alguma qualidade é preciso algum tempo, dado que eu não sei fazer poesia espontânea.
O passo seguinte seria publicar em livro. Mas isso não está no meu horizonte a curto prazo. Primeiro quero fechar o blog atual e recomeçar um outro com o meu nome próprio, para avaliar até que ponto a ausência da protecção do pseudônimo me inibe. Depois disso, se tudo correr bem, talvez publique. Este processo de maturação deverá demorar uns 5 anos.




sexta-feira, 18 de novembro de 2011

PEDRO BELO CLARA - POESIAS




"De um Tempo em ruínas" 




                                            
Numa clareira, no centro da floresta de betão,
Rodeados por detritos de velhos muros de tijolo
E por sólidos pedaços de cimento quebrado,
Dançam as gentes do seu arruinado tempo
Num devaneio global, torneando uma fogueira
Que, subida, queima os descartáveis retalhos
Das suas existências toscas e sem significado.


Com seus pequenos olhos de plástico revirados,
Acenam de quando em vez à população vidrada
Que em silêncio assiste e oscila a sua cabeça
Em sinal de concórdia com o ritmo que escutam,
E logo continuam o ritual, por demais alienados
Para escutar ou entender o além fronteiras –
Há que acalmar a ira destrutiva de seu Senhor.


Mas o mantra zumbido transforma-se em grito – 
A desesperada tentativa de abafar o vazio
Que em seu âmago se vai dilatando ainda mais – 
E toda aquela imagem de súbito se acelera:
Correm e saltam em volta das vivas labaredas
Num acorde muito intenso, louco e desapegado,
Entoando cânticos com as palavras de ninguém.


Estão rendidos aos cintilares da sua alucinação
E aos Ídolos que tomam por únicas verdades,
Mas servem a vontades de uma figura oculta
De cujos dedos provêem as cordas que os atam
E de cuja voz ressoa a ordem da sua debilidade. 
Ajoelham-se como numa contemporânea oração 
E louvam os benefícios do seu Deus de néon.




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Caem as chuvas tropicais
Através da cálida humidade
Que paira pelas colunas erguidas
No brejo do descontentamento,
Marcadas pelas heras vampíricas
E pela erosão de um rude vento
De hálito seco e pestilento – 
Há algo de acre que se decompõe.


Voam, inquietos e irregulares,
Os mosquitos da desarmonia,
Enfeitiçados pelo breve veneno
Das longas palavras peçonhentas
Cujos ecos aqui ausculto, como mancha,
Em busca de uma qualquer presa 
Que se oculta nas malhas de um jogo
Onde aquele que caça é, na verdade,
Aquele que acaba impiamente caçado. 


Mas as palavras ainda ressoam,
Tinindo como se cada uma das letras
Possuísse um pequeno sino de aviso,
Impedindo o seu eterno olvidar;
Vêem de longe, muito para além
Dos cantares quase tribais
Que se fazem ouvir de arrasto
E das fogueiras dos acampamentos
De andarilhos junto ao rio de bronze,
Atravessando a estagnação
Deste campos de quieta evolução
Com os anexos de sentires e de tons
Ribombando ainda abafados.


Afasto-me de seu efeito,
Como se possuísse algum repelente
Capaz de o fazer esmorecer,
Esvazio o saco que se completou
Pelas peripécias dos encontros
E começo a pescar negras borboletas 
Numa pequena nuvem de pó,
Observando o traço que se esboça
Pelo fumo de uma parte deste mundo
Que à distância se faz notar, tão altiva
Como a sua industrialidade decadente.  




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Imergindo na multiplicidade
De amplos reflexos aleatórios,
Um denso vulto, incógnito,
Consome-se por entre suspiros
De um silêncio consentido.
Oculto por entre os objectos
Que adornam o seu espaço,
Fantasiado de Vazio Absoluto,
Embala num copo largo o licor
Do pensamento amadurecido,
Mas demasiadamente torpe
Para dele exalar um sentido.


Perante o inflamar dos toros – 
Um ocioso contar de instantes –
Prostrados na breve lareira 
Das fornalhas da destruição,
Exibe o ténue traço de quem
Retém múltiplas alucinações – 
Sonhos, Desejos e Ânsias. 
Inquieta-se e desespera por algo,
Por perseguir, talvez, as pisadas 
Dos ratos de sua consciência;
Mas as correntes que possui
Somente em ilusões mentais
Toldam-lhe os movimentos – 
E todo o esboço de célere acção 
É uma idealização colorida.


Por entre seus sonos sombrios,
Aguarda apenas, obediente e
Desprovido de luminosidade,
Por aqueles que lhe lançarão
Os ossos do efeito não indagado,
Pelas mãos que surgirão através
Da negra cortina de seus olhos,
Em irónica piedade ofertando
A esmola de sua benfeitoria.


Ainda não se formou a hora
Da luz rarefeita…




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Esvai-se, empeçonhado e lento,
O rio que carrega os sobejos
Da vivência voraz e entorpecida;
Esvai-se e divide-se por entre
As bifurcações talhadas no solo
Infecundo que nada sustenta,
Nem os rostos de uma morte.
Sob este longo céu de despejo,
Diluem-se pela brisa fumegante
Os dignos louvores daqueles que,
Pela margem, se demoram na
Exaltação das formas disformes
Do rio cinzento que se esvai.
Pudera! Em suas vidas insípidas,
Hábito se fez do elogiar tamanha
Podridão, tamanha ausência
De engenho ou algo enobrecido – 
A incapacidade traja roupagens
De soberba Rainha, incontestável.


Eu, que pela soturnidade exalo
Lamentos que poderiam ser alegres,
Sonhei com os dias translúcidos
E com as noites de puro esplendor…
Como o cristal de tal futuro deveras
Baço se encontra, quase quebrado,
Num coração de sonhador assome
A solidão apertada da imagem 
Criada e jamais vista… Proscrita!
Sim… Quem mais os ama, 
Mais por eles amargura…




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Era uma visão, a visão de um dia
Que aguarda o seu conceber,
E a ocorrência que se entendia
Deveras impossível de ocorrer.
Todo o certo se deu por incerto,
Todo o bom valor se depreciou,
O longe logo se anunciou perto
E o impensável se concretizou.


Era uma visão, estranha visão
De um motim de Era reprimida:
A Fúria, a Revolta e a Agressão
Palpitavam na Face Oprimida
E os Espectros de um Outrora,
Assombrações insuportáveis,
Bailavam até ao raiar da aurora
Em seus farrapos camufláveis.


Reinavam os escravos em júbilo,
Obravam os Reis, humilhados,
Os loucos em seu sadio rejúbilo 
E os sempre sadios, tresloucados;
Ruíam os simples – não o vaidoso
Que à sua condição se remetia –
E ascendia o avarento ardiloso, 
Que em seus desejos se desmedia.


Reclamavam, sem saber, o pó,
Uma imensa terra de ninguém
Nas ruínas de uma débil Jericó,
Entregue aos Ventos do desdém.
Mas desse Nada floresceu o Tudo,
Pois a Verdade é dos Verdadeiros,
Abençoados pela capa de veludo
Do Amor, o mais firme dos esteiros.






*Pedro Belo Clara - Entrevista

PEDRO BELO CLARA - ENTREVISTA Nº12




EntreGêneros: Fale-nos um pouco de sua origem. Sua infância em Portugal, seus estudos, seus sentimentos, sua trajetória de vida, os fatos e vivências que o fizeram tornar-se a pessoa que és.

Pedro Belo Clara (PBC): Nós somos, acredito, o resultado de todas as nossas experiências passadas e definimo-nos em nossas decisões e atitudes. Sou hoje aquilo que ontem vivi e aprendi. Nasci em Lisboa, no Outono de 1986, no seio de uma família pequena, mas unida. Estive até aos meus 17 anos em casa de meus avós e, em todos esses anos, convivendo com pessoas mais sábias e maduras, uma parte de meu carácter foi moldado a essa imagem. Seguiram-se os belos tempos de faculdade, onde me formei em Gestão de Empresas, e, posteriormente, uma pós-graduação em Marketing e Comunicação. Apesar de tudo, nunca me senti atraído pelo mundo empresarial. Assim sendo, terminadas essas etapas, decidi dedicar mais tempo à minha escrita. Actualmente, equilibro-a juntamente com a minha actividade de Formador. Note que é complexo descrever assim todas as peripécias de uma existência! Devo reservar-me às principais etapas… E por todos estou grato. Mas muitas mais ainda virão, é claro. E sei que, se nos dispusermos a tal, seremos mais sabedores hoje do que ontem fomos; mas não tanto quando amanhã ainda seremos. É uma aprendizagem contínua. 

EntreGêneros: Como e quando descobriu-se enamorado pela escrita. Sentiu-se muito influenciado pelos seus conterrâneos poetas portugueses, como Pessoa, por exemplo?

PBC: A génese da minha relação com a escrita está relacionada com a música, curiosamente. Ainda adolescente, como tocava violão e tinha uma banda (se é que se poderá chamar de “banda” a um grupo de rapazes, musicalmente inconscientes, que nem lugar certo tinham para ensaiar), decidi explorar os campos da composição. E assim compus cerca de catorze temas. Um dia, quase sem dar por isso, estava a escrever poemas… Foi um processo bastante fluido, natural… Como acontece com os grandes amores. Só mais tarde, já com 16/17 anos, frequentava eu o 12º ano de escolaridade (sistema de ensino português), é que tive um verdadeiro contacto com os grandes Poetas, durante minhas aulas de Português. Na verdade, quando criança, nem gostava de ler! Só banda desenhada (quadradinhos)… Talvez tudo fosse diferente, se tivesse descoberto a Poesia durante a minha tenra idade. Hoje, tenho vários Poetas conterrâneos que me servem não só de inspiração mas também de aprendizagem: Alberto Caeiro e seu criador, Fernando Pessoa, Cesário Verde, Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner, entre muitos outros. 


EntreGêneros: "A espera, o período de passividade, é um ardil complexo de entender e de assumir, nem que seja pela sensação de que algo nos escapa e de que estamos imersos numa tortuosa escuridão." Esse trecho foi retirado do texto "Etapas e desafios", postado de seu blog. 
Sentir-se imerso na escuridão é um dos medos universais. Até que ponto os temas que envolvem as emoções humanas são tratados em seus textos? O que seus escritos tem de confessional? 

PBC: Para eu escrever sobre algo, para partilhar um pensamento ou ensinamento, tenho de passar por essa etapa, sentir a doçura ou a amargura daquele sentir e ascender, rumo ao meu amanhecer sentimental. Não faria, para mim, sentido se fosse de uma outra maneira. Estaria a ser um autor dissimulado, enganador. Sinceramente afirmo que não escrevo pela Arte; escrevo por Amor à escrita e para meus leitores, sejam eles quem forem. Para que saibam que há alguém que é como eles, alguém que ama e sofre como eles, alguém que fala para eles, no meio de todos eles. Escrevo porque sempre senti que tinha algo a dizer aos Homens. 


EntreGêneros: Além do escuro, o silêncio também pode ser considerado um medo universal. Através do poema, o poeta interrompe esse silêncio e nesse processo lida com o branco da folha de papel (ou da tela do computador). Alguma vez já te deu "um branco", um bloqueio na hora de escrever?

PBC: Fala que a Treva é um medo universal… Concordo, mas aproveito para relembrar: da Treva nasce a Luz. Por vezes, de tão imersos que estamos em nossas inquietações, esquecemo-nos que existe sempre uma saída, mesmo que não a consigamos ver. E, para mim, o silêncio é uma verdadeira bênção… Mas respondendo à sua pergunta, devo dizer que tais momentos, apesar de não serem inéditos, são escassos para mim. Escrevo apenas quando sinto a ‘Poesia’ ou a ‘Mensagem’ de um texto ou conto a vibrar em mim. Se os sentidos se aquietam, não escrevo. Conduzo-me por processos simples… Para complexidades já bastam as da mente!...

EntreGêneros: "Como somos jovens e imaturos, em termos de consciência, e como estamos ainda a aprender as artes deste sublime sentimento… Todo o Caminho é um palco de aprendizagem e de ensinamento, mas quantos conflitos não já se geraram pelo Amor se encontrar extinto ou banido das vidas daqueles que os incentivaram? Quanta ira, ódio reprimido ou angústia, existirá nos corações de quem se fechou ou de quem nunca tocou no semblante do Amor?" 
Belo trecho de seu texto " Ausência de amor". Percebe-se que o amor é para você um sentimento nobre e que se aprende e exercita ao longo da vida. Fale-nos um pouco sobre o amor e como ele faz parte de sua vida e de seu processo de criação.

PBC: O Amor une os Homens, mas muito poucos estão dispostos a aprender com ele. É necessário empenho – perder hoje para triunfar amanhã – e humildade para reconhecer nossos erros e falhas. Quem tenta, acertará um dia. O Amor é a resposta de tudo, o Amor é a saída, o Amor é uma flor selvagem e frágil, o Amor é Luz. Mas não existe Amor sem dedicação, sem Tempo… Eu crio por Amor e tento viver pelo Amor. Não é fácil, mas é deveras gratificante.

EntreGêneros: Em seu texto " A derradeira viagem" você aborda o sentimento de perda. Assim você diz: "No entanto, mais cedo ou mais tarde, sabemos que irá eclodir a hora em que tais indivíduos, estando ou não fisicamente mais próximos de nós (pois tal não é realmente significativo), partirão até terras distantes, paragens longínquas a toda a material percepção, empreendendo, por fim, a mais arrojada de todas as suas viagens, aquela que, por curiosa constatação, será igualmente derradeira (pelo menos, durante uma específica fracção de tempo). Este acontecimento é deveras inevitável, e todos aqueles que um dia decidiram realizar a tamanha empresa, sabiam de antemão que chegaria à hora em que suas presenças iriam ser reclamadas por seu lar, o seu verdadeiro lar."

Muito interessante a sua colocação, que me remete a questão do processo reencarnatório. O que pode nos dizer sobre isso? Você crê na reencarnação? Se crê, baseado em que doutrina ou filosofia?

PBC: Sim, creio plenamente. Li e discuti diversas teorias, ideias, propostas, mas… Mantenho uma linha de pensamento próprio. Pode parecer estranho, mas sinto que assim é; creio porque, para mim, todo esse processo faz sentido. Vejo este mundo como uma escola; nele, todos nós aprendemos, experimentamos. Somos pedaços de um Sol Maior que experiencia a matéria aqui, neste belo Planeta. Muitos mais aspectos (karma, resgastes, etc.) prendem-se com estas questões e eu não pretendo divagar. Somente sinto em mim uma intuição que me faz crer, que me faz ver essa hipótese como verdadeira. Não faz sentido uma vida mortal vazia e sem propósito. Há algo superior… E o processo de reencarnação é apenas um de seus vários constituintes. 

EntreGêneros: "Tenho, numa determinada prateleira de minha emadeirada estante, três livros: o mantido, o lido e o vivido", você confessa em seu texto " Os três livros", comparando o caráter desses três livros com a forma como cada pessoa se posiciona em sua vida. Comparação bem interessante. Fale-nos mais um pouco sobre ela e  diga-nos qual dos três livros você seria?

PBC: Penso que todos gostaríamos de ser um ‘livro lido’, lido apenas. Sem as marcas do tempo, as feridas que rasgam nossa pele e cravam em nós uma dor que se ameniza com o passar das estações. Mas, verdadeiramente, devemos ambicionar ser um ‘livro vivido’. Eu, apesar de tudo, desejo ser um dia um ‘livro vivido’. Em cada manhã faço para que assim seja. No fundo, essa ideia prende-se com o medo que nós, caminhantes desta Vida, temos perante ela. É claro que um ‘livro vivido’ tem suas marcas, os resquícios dos processos que realizou, das etapas que venceu e perdeu… Mas para sermos árvores frondosas, alguns de nossos ramos, em algum dia, deverão ser cortados. Dói, é claro que sim, e ninguém desejará essa dor, mas… No final, seremos aquilo que, um dia, quisemos ser.

EntreGêneros: Em todos os seus textos em prosa, você fala utiliza muito a palavra caminho. Existe um poeta sevilhano, Antonio Machado que tem um poema que diz "caminante, no hay camino, se hace camino al andar." Consideraria essa a sua filosofia de vida?

PBC: Sim, de certa maneira sim… Mas note que difiro um pouco das palavras do poeta. Para mim, existem vários caminhos já definidos; o caminhante apenas os materializa com seu caminhar. No cabeçalho do meu blog, gravei a seguinte inscrição: «A Vida é um caminho, o Caminho é uma vida; a cada momento, rumando ao Infinito, o caminhante explora o Tempo, o Espaço e o cheiro e a forma de todas as coisas». Penso que isso diz tudo.

EntreGêneros: Em seu blog, a maioria de seus textos é no formato de prosa. Poucas são as poesias. Você prefere ou sente fluir melhor a sua expressão através da prosa?

PBC: Não. O blog cria, de facto, essa ilusão. Como falei antes, iniciei-me na escrita através da Poesia e, até hoje, ela me acompanha. Posso dizer que 85% daquilo que escrevo é Poesia… Criei o blog porque desejei expandir meus domínios artísticos. Como tal, nele publico, agora, somente aquilo que reflecte a minha condição de prosista.  

EntreGêneros: Seu  primeiro livro editado, em novembro de 2010, " A jornada da loucura",  foi um livro de poemas. Foi um mero acaso ou teve a ver com o seu momento criativo? O que tem de você mesmo, de seu processo como ser humano, nesses poemas?

PBC: Como já referi, foi de Poesia pois esse é o género que mais naturalmente flui em mim. Em relação à obra, ela anuncia, de facto, um processo – o trilhar de um percurso iniciático. É claro que eu tive de o conhecer, de o sentir primeiro antes de o poder escrever. Cada poema, nessa obra, é uma etapa, algo que nos aproximará do término da viagem, mas somente para que uma outra se inicie. É, no fundo, um despertar espiritual. E material também… Ou não tivessem sido os poemas escritos em três cidades diferentes!... Viajados, não??

EntreGêneros: Fale-nos um pouco sobre seu novo projeto: o lançamento do livro "Nova Era". Qual é a temática do livro, em que se inspirou para concebê-lo? Trata-se de prosa ou poesia?

PBC: Esse novo projecto, que espero lançá-lo já no próximo mês, aqui em Portugal, é algo que há muito desejava fazer, apesar só ser ainda o meu segundo livro. É de poesia, mas uma poesia necessariamente interventiva. Dizia Hoderlin: “Para quê Poetas em tempos de indigência?” Para despertar consciências, direi eu. É necessário mudar, repensar os moldes sociais em que vivemos, ‘abanar’ a estrutura que nos suporta e reerguê-la… Daí este livro. Quero com ele alertar para a necessidade de nos prepararmos para uma “Nova Era”. Se estivermos atentos, conseguimos entender que algo já está a mudar… Que o combate seja pacífico, que o Amor, o Respeito e a Tolerância imperem nos corações dos Homens, que possamos aprender para ensinar e ensinar para aprender. São ideias que há muito vivem em mim e que pulsavam para se libertarem. E agora aqui estão elas, moldadas em formas de versos.

EntreGêneros: Agradeço muito pela entrevista e deixo esse espaço reservado para falar sobre algo que deseje. 

PBC: Apenas tenho a agradecer este momento – foi bastante agradável – e a oportunidade de estar aqui, entre amigos. Foi um sincero prazer para mim! Até breve.






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Bertrand Livreiros

SINOPSE :
"Em tempos conturbados, social e economicamente, o autor manifesta-se “pacificamente” pela poesia. Alerta-nos para a necessidade de despertar consciências, de lançarmos as fundações de uma "Nova Era" que terá de brotar do interior de cada um; terá de ser do renascer individual que se conjugarão sociedades renovadas. Através de uma poesia interventiva, leva o leitor a auto-questionar-se: quem sou e o que pretendo fazer? Que caminho seguir? Como posso influenciar positivamente a sociedade onde vivo? (...Estando desperto, novos horizontes serão alcançados. Saberá quando dizer «sim» ou «não» e escolherá o seu trilho.O futuro começa hoje na definição de cada carácter». "
José Belo Vieira, "Do Prefácio"
 




terça-feira, 8 de novembro de 2011

MARCIO RUFINO - POESIAS



Juntos


E juntos éramos uma geração,
uma revolução,uma interrogação.
E juntos éramos uma história,
uma trajetória, uma glória.
E juntos éramos uma aventura,
uma postura,
uma fratura exposta em pleno ocidente nacional.

E eu era apenas uma criança,
uma esperança de um futuro melhor.
Que ainda nem sabia que todo amanhã vira hoje,
para depois morrer como ontem
e renascer como anteontem.

Um curumim, que, coitado,
achava que só porque era começo,
nunca seria meio nem fim.

Um neném,
um alguém que nada sabia da vida,
porém, achava que alguma coisa da vida sabia além.

Quando eu olhava para o céu cor de anil,
você passou e nem me viu.
Pertubando toda minha calma.

Não sou Lázaro,
mas alguns vira-latas já lamberam minhas feridas d'alma.

Alma essa que me enxerga sem me ver,
que me saboreia sem sentir meu gosto,
que me masturba sem me tocar,
que me enlouquece lucidamente.

Eu, então, passei a te perseguir.
Há duas horas digo que vou embora
mas continuo aqui.

Às vezes acho
que você é uma pequena grandeza,
já que sei muito bem
que para o amor
não se põe mesa.
Mas de repente, eu caio do cavalo.
Chorar? Em que ombro?
Já que a sensação de estar caindo
é mil vezes pior do que a dor do tombo?

Me xingo, me humilho,
me rasgo, me ajoelho,
me olho no espelho
ou leio um livro de Paulo Coelho.

Mas eu fico na minha.
Você fica na sua.
Uma inspiração me cobra
A criação que na verdade é sua.

Passeamos embaixo da terra,
Em cima do cèu,
Dentro do mar.

Viajamos na frente do ônibus,
Submerso ao navio,
Rasante ao avião,
Tudo é um só coração.

Olho para trás não há ninguém,
Nenhuma pessoa, nenhum espírito, nenhum perispírito,
Nenhum sinistro coelho nos roendo a carne como legume.

E será que chegamos lá?
Será que vamos alcançar
algum rabo de cometa?
Alguma hélice de helicóptero?

Alguma asa de beija-flor?
Algum canto do sabiá?
Só Deus o saberá.

E juntos éramos uma luta, uma abertura, uma cultura.
E juntos éramos uma dinastia, uma energia, pura poesia.
E juntos éramos uma ilusão, uma consagração,
verdadeira fusão da realidade com a paixão
no Brasil da minha imaginação.




Mania de Mar


Na primeira vez que eu vi o mar
Eu não entendi nada
Tinha acabado de acabar a madrugada
E o azul que estava em cima
Era diferente do azul que estava embaixo
E a formosa linha sem cor estava ali no meio.

Hoje eu me amarro no mar
Minha mãe tem medo do mar
Meu pai não tá nem aí pro mar.

A mulata que entra
O moreno que sai
A sardinha que pula
A gaivota que cai
De boca
Na ostra.

Jogam merda no mar.
Meu Deus.
Por que fazem isso com meu mar?

Mergulho no mar que não muda
Deixo molhar em meu dorso sua espuma
Vejo o mais destemido surfista e sua prancha
Vejo a mais libidinosa mocinha e sua tanga.

Isso não é nada frente a imensidão do mar
Que é traiçoeiro
Que é cancioneiro
Que é poderoso
Que é misterioso.

Que tem maresia
Dentro de sua poesia
Que rola na areia
nos olhos da sereia
Cansada de chorar
Choro salgado de mar.

O mar tem mania de não sair de moda
Ele molha nas pedras suas histórias
De piratas e marinheiros
De caravelas e navios negreiros.

O mar invade meu nome
Se fundindo com o cio
Mar-Cio
Marcio
Essa coisa me melhora
A cada hora de minha molusca existência
Mesmo que isso não encha os olhos de ciência.

Não me cando de viajar
Quando danço com o barulho do mar
Lembro da bela deusa que nasceu do mar
Lembro de tudo que o mar dá
Me esqueço de tudo que o mar pode levar.

Que um dia o mar me leve
Para o fim de seu infinito
Através da carcaça de uma baleia
E eu ilustre habitante dessas ondas
Possa andar por entre as conchas
Contemplando o fascínio d'alem mar
E que meu coração romântico
Se lance no Oceano Atlântico
Onde ele nunca há de parar.




Amor Anormal


Sentir o proibido não é nada
Pior é aceitar o proibido
Num rumo qualquer de estrada
Ou na dolorosa manha da libido.

O outro não quer minha atormentada insônia
Muito menos que eu mude meu misterioso hábito
Só quer sentir o sufoco e o cheiro de sua agonia
Dentro do denso aroma que sai de dentro do meu hálito.

Não é nada atender o desejo do outro
Pior é fazer com que esse desejo seja também seu
E ver dentro da lama do outro o ouro
Acreditando que o calvário é um doce himeneu.

Entregar-se à perversão passiva
É muito difícil como cômoda intolerância
Que revertida em condição da vida
Brota em nosso peito uma vacância.

Da janela da minha casa
O vento me beija numa linha retílinia
Mas vejam: estou sem graça.
Lembrei-me que esta casa não é minha.

Olhe só toda a beleza
Que a morte desta tarde nos oferece
E preste atenção em toda destreza
De me encantar com seus olhos de quem não me conhece.

O futuro me assusta muito
Com a ajuda do tempo me agride
Com ameaças de sérios infortúnios
Onde o chão sob meus pés resiste.

O outro também quer me dominar
Como o futuro e o tempo ele também é assim
Com frieza e crueldade quer me usar
Sem saber que também será vilipendiado por mim.

Com seu cinismo ele comanda a brisa louca
Transforma nosso encontro num fato casual
Ele quer sentir o odor de seu sêmen em minha boca
Mas isso são sonhos imundos que povoam minha cama de casal.

Em seu feitiço ele busca uma corda de banjo
Em seu silêncio ele busca um bocal de clarineta
Pares de asas vermelhas de anjo
Pares de chifres brancos de capeta.

O outro sou eu num idílio híbrido
o outro somos nós num dilacerado momento.
Que desenha o amor anormal e ilícito
Num papel invisível rasgado pelo vento.

Esse amor que por se ousar existir
Subvive a margem do planeta
Prestes a se deixar cair
E ser amparado por um rabo de cometa.

Não sei o porquê de todo esse desprezo
Se tudo que aí está é amor
Queria falar de todo o meu desejo
Sem causar deboche nem horror.

Pois o outro me reconhece como um mero conhecido
Me cumprimenta como um qualquer que por acaso me vê
Conversa comigo como um velho e intímo amigo
E pede meus carinhos com a carência e dengo de um bebê.

Dedico esse texto a memória de Clarice
E continuo sufocando a minha agressividade
Pois a anormalidade me disse
Que o amor e a arte é que salvarão a humanidade.




Homem-Peixe


Pulou para fora do aquário
Rastejou-se no carpete
Procurou um mar imaginário
Sem que ninguém soubesse.

Rolou da escada
Querendo alcançar a rua
Chegou até a escada
Saiu embaixo da chuva.

Seguiu pegadas
Deixou vestígios
Descamou-se em estradas
De delírio.

Atravessou pistas
Chafurdou na lama
Prejudicou as vistas
Machucou as barbatanas.

Mergulhou em poças
Refugiou-se no cais do porto
Esbarrou em louças
Sem nenhum conforto.

Buscou um barraco
Um pedaço de vitirne
Uma peça de teatro
Um roteiro de filme.

Um conto
Uma canção
Ficou sem ponto
Sem noção.

Nada encontrou
Nem mesmo um tema
Só se encaixou
Neste poema.




Caçada dos Instantes


É um antigo sonho que se rematerializa
Em formas insanas e incoerentes
Uma tela que se repinta em cores diferentes
Nela dois sinistros pequenos círculos próximos
Me perseguem pelo quadro de imagem árida
Penso que são seus firmes olhos
Mas são os penetrantes olhos de uma águia
Ao despertar não consigo conter o motim que há no leito
Dos fragmentos que surgem no meu ócio
Como um fino som agudo no peito
Surgido aos poucos no fundo do silêncio
Os fragmentos são meus queridos amigos fantasmas
Testemunhas únicas do ouco nascedourode minhas palavras
Arautos de um cruel pôr-do-sol que invade
O crepúsculo evasivo e selvagem de antigas horas
Mas lembro que antigamente as tardes
Eram mais tranqüilas, quase mortas
Na caçada dos instantes
Reverberam inúteis certezes cínicas, incessantes
Vigiando tempos
Perscrutando previsões
Acossando momentos
Tocaiando as ocasiões
Tudo constantemente uma coisa na outra implica
Nada nasce do nada
E até o nada se recicla.





* Marcio Rufino - Entrevista