terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

CRISTINA DESOUZA - POESIAS




A ESMO




falta coragem
falta tempo

falta o vento
falta tudo
e nada

nesta estrada
eu sigo nu
meu sentimento
à flor da pele
cru

palavras vêm
palavras vãs
ou não
sem direção
vou a esmo

e tudo
é sempre
o mesmo:
a casa
a vida
a couraça
que visto
com medo

sobram o dia
a luz
os teus olhos azuis
e esta vontade
de ser
inteiro

__________


DANÇA DA LUA  



durmo liberto

ao céu de outono
desperto
sonhando com
a palidez da lua
crua
branca
suave bruma
sua sombra tece
uma rede mansa
que meu corpo
embebe
e comigo dança
com as pernas
nuas
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AMARELO RAY-BAN



as horas do dia

passam por mim

bailando
dançam amarelo
e negam
o que quero
deste sol
ray-ban




FUGA




a fuga passa por mim
à minha espera
cansada me rendo
ouço a música
o vento
e de súbito
só resta
a terra

__________


LÁGRIMA ALADA





choro uma lágrima
alada
lâmina de espada
que brilha
e corta
a carne gelada
de medo
corre ligeira
pela face
suada
beija o lábio
e desliza
até o queixo
de onde se joga
despudorada
para dentro
dos meus seios
perdendo-se
no vão do nada

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DANÇA



simples
palavra não dita
esconde-se num poema
numa dança
que mansa
pinta um quadro
sem tinta


__________


floco de neve
silencioso e só
paira no branco

a noite sem fim
engole vastos sonhos
estrelas dormem

__________



O OVO E A CANETA



Fito a caneta. Tão intenso é o meu olhar, que segundos se passam em minutos, para em horas se transformar. Catatonia de mãos rígidas, tensas pela vontade de agarrar algo que não sei. Ou sei? A caneta. Mãos em punhos fechados e duros, que fazem doer meu corpo, numa armadura impassível. Tremo, fingindo não tremer, tento controlar esta necessidade imensa de me mexer.
Minha cabeça roda. Gira por entre livros, folhas e folhas, entre as malhas da máquina de escrever. E esta vontade de agarrar a caneta e tudo mais esquecer. Vontade de escrever linhas sem fim. Perder-me em tanto prazer. Mas minha cabeça tirana finge não saber. Ignora este querer, torturando-me, fazendo-me contorcer.
Tenho que acabar estas laudas. Preciso ler mais este capítulo. Amanhã tenho que levantar cedo e correr. É preciso fazer esta barriga encolher. Não dá para ceder...
A caneta me obeserva, expectadora atenta de minha agonia. Estou inquieta. Minhas mãos úmidas, que agora quebram a imobilidade, estão hiperativas. Mas movimentos sem intento, quase que congelados na falta de objetivo. Mãos que tocam o teclado, mexem nos livros, tudo a esmo, em vão. Não consigo me ater. Não consigo deter-me ns coisas a serem concluídas
Levanto-me e ando em círculos. Tento me lembrar do que era mesmo que tinha que fazer. E este suor nervoso não consegue disfarçar este meu maldito modo de ser. Tenho que me concentrar. Não posso me dispersar.
Sento-me novamente e o plástico molhado e sudorento da cadeira faz-me sentir estranha, como se estivesse sentada numa poça de urina. Nem isto dissolve a tensão que me rói. Preciso terminar. Mas terminar o quê mesmo? Sinto-me sufocada por este calor frio de terror e ansiedade que não consegue se saber. Uma onda de náusea faz minha cabeça martelar. Levanto-me novamente e vou ao banheiro. Penso que vou vomitar. Apóio-me no portal. Respiro fundo. Dobro o meu corpo por sobre mim mesma e viro um bebê insolente perdido. Recordo-me de uma canção de ninar que minha cantava para mim.
Se eu pudesse, arrancava minha cabeça do pescoço e a embalava até não mais acordar. A náusea passa e vem a sede. Retiro uma garrafa d'água da geladeira e bebo pelo gargalo. Afogo-me com fúria de náufrago. Engulo-me com a garganta de um tubarão. Molho minha testa suada com a água gelada, numa tentativa de despertar, mas não consigo.
Volto à máquina de escrever e me sento à mesa. Encaro a caneta de frente, hipnotizada. Perco-me com ela em devaneios, sem tocá-la. Mas a cabeça novamente martela o meu dever.
Percebo então meu peito inchar e doer. Incha tanto e tão rapidamente, que tenho que desabotoar a camisa. Já não consigo caber mais nela. Abro-a e assusto-me com o que vejo. Bem no centro do meu peito, entre os dois seios, existe um ovo a crescer. Cresce tanto, que parece que vai nascer. Apavorada, desvio o meu olhar, que volta a se encontrar com a caneta. Esta agora parce ter um rosto e julgo até poder lhe distingüir um olho!
Sinto-me doente, febril. Penso estar delirando. Com as mãos trêmulas e molhadas de suor, lentamente palpo o ovo no meu peito. Ele pulsa com ritmo. Está vivo. Não posso acreditar que eu vá dar a luz a um ovo. Ou seria meu coração?
Torno a fitar a caneta e agora, além do olho, vejo uma boca, de lábios carnudos e pequenos, a me sorrir. Sua face me convida a tocá-la e eu já não mais posso ignorar este convite.
Num desvario final, tento evitar este encontro. Ligo o rádio, assobio uma música, procuro uma saída para fugir de vez. Mas não consigo. Simplesmente não posso me mover. É inúti resistir. Como resistir? Tantas palavras a jorrar, tantas frases a me sacudir, que se descarregam num estímulo nervoso que faz meu braço se mexer e minha mão se abrir. Não posso mais fingir não ver. Olho para o teto, como que a procurar por Deus. Mas só vejo a luz azul brilhante da lâmpada fluorescente. Um calor viaja em onda pelo meu corpo e meus dedos se aproximam da caneta. Num gesto súbito, eles se esticam e agarram-na. Quase um incesto. Seguro-a com força, para não a deixar escapar. Num jorro de poço artesiano, brotam letras, palavras, frases, parágrafos inteiros. Rimas escapolem pelas pontas de meus dedos e eu escrevo sem ver.
Termino meu parto de palavras, largo a caneta e passo a mão pelo meu peito. Dele retiro o ovo. Meu ovo. Simétrico, todo branco, que eu deposito sobre a mesa, sobre o papel escrito. Sinto-me cansada, exausta e estico-me na cadeira. Tamanha lascívia se apodera de mim, que termino por desfalecer. Perco-me num sono profundo, de quem já não mais tem o que temer. O ovo e a caneta me observam tranqüilamente. Poema, prosa, verso ou fantasia, já não importa. O silIencio das palavras escritas e plenas, paridas num esforço de guerreira, transmutam-se na expressão do meu ser. Poesia ou não, o ovo e a caneta, casamento perfeito, vão por ali ficando, como que a me sorrir.

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INSÔNIA




Numa noite insone, pensamentos vão e vêm. E eu acordada olhando o céu dark anil do teto. Busco estrelas que brilhem sem fim. Estico o ouvido para ouvir a música que não há. Cismo em procurar num céu de argamassa o que não encontro no chão de concreto. Os minutos, as horas passam implacáveis, que nem o vinho branco ousa tocar.

Meus gatos saracoteiam lá e cá. Sentam-se no parapeito da janela e sonham com o mundo do lado de fora E eu lembro o quintal do meu avô e meu mundo lá vivido. Os olhos dos outros não eram então a divisa entre a realidade e a minha imaginação.
Poesia eu procuro no piano e no andar dos gatos. Na noite, sobram eles, as canções não tocadas e eu insone.
Sou azul. Azul denso de mar à distância, que só termina no horizonte. Começo então em terras outras. Azul que não se mistura com os amarelos, vermelhos e laranjas de onde existo. Nao há arco-íris para tantas cores, mas insistentes pingos de chuva cismam em integrá-las num prisma óptico inverso. Agora, as rochas marrons de Phoenix também são engolidas pelo meu azul e viram deserto submerso sob o meu mar.
Faz frio lá fora e quase neva em Phoenix, este pássaro eu que nasceu das cinzas. As roseiras cobertas pelo gelo da noite, deixam entrever brotos ainda tenros. Sobrevivendo, tornar-se-ão rosas lindas.
As horas continuam passando e não tenho talento para transformá-las. Mas tenho paciência para aceitá-las. E sigo elocubrando, tarde da noite, já bem madrugada. Eu, meus gatos, meus livros e meu piano. Todos a divagar na imensidão do nada. Quase amanhece. Dia de novo para quem sempre nunca esteve acordada...


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O SILÊNCIO PASSA POR MIM



O silêncio passa por mim. Roça a minha pele. Eriça meus pelos, enquanto me escondo no leito estreito Toco de leve, com meus dedos cálidos, seu sopro gélido. Ele me ronda na quietude inaudível do nada.

Perco a voz e pego a dor com as minhas mãos sós.

Um raio de sol penetra meu abraço. Adentra-me.

Amanhece na parede, enquanto meus olhos seguem presos numa rede. De sonhos opacos.

Fantasma solitário. Silêncio pálido. Despede-se em sonho manso, deixando-me sozinha, no vácuo.


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 xxxxx- SOTERRAMENTO




soterro a voz

aterro meu corpo
a um espírito
mudo


em tudo que escuto

só há silêncio

marcado
na ausência
na vaga

no luto
profundo
pelo morto
não morto

pela onda
não quebrada

por esta maré
vazante

onde me afogo
na terra
na areia
no nada


xxxxxx –


Haicai

sou satélite
dos girassóis ao vento
reluzo ouro

________
Haicai

pinto pétalas
aquarela e guache
mãos sujas de flor

________
Haicai


noite escura
pirilampos arteiros
pintam o sete

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Haicai



saudades de mim

numa noite nublada
estrelas sem céu




*

3 comentários:

  1. Excelente!

    É bela e pura a poesia de Cristina. Da poesia, passando pelos haikais e textos. Gostei demais!

    Parabéns, Cristina!

    Beijos Ianê

    Mirze

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  2. Muito obrigada, Mirze!

    Fico muito feliz que tenha gostado. Quando puder e quiser, visite os blogs, acho que gostará. Um beijo grande e boa noite!

    Cristina

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  3. Aff; Que "Mara" ; tua poesia, haicais, teus textos; ENTRE A SEDA E A NAVALHA! Te li aqui e me vi(li) um pouco... ás vezes entre o silêncio, a música , a graciosidade e mistério de um felino encontramos "alma" gêmea....seria melhor dizer, "poesia gêmea"; até hj achei dois dos meus ( Rubens/ casa de Paragens e Neusa/ Sinceridade Brutal); e fiquei muito feliz agora...talvez tenha encontrado a terceira, rsrs!!!
    Quando puderes e se quiseres me leia; quero saber suas impressões;)
    *Também escrevo haicais*)
    Parabéns pela tua poesia, musicalidade, pelo blogue!
    Bjo!

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