terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

CRISTINA DESOUZA - ENTREVISTA Nº 16




EntreGêneros: Que fatos importantes de sua vida levaram-na ao processo da escrita?


CS: Olha, eu não sei se tem um fator “precipitante” (rs). Me parece que nasceu e cresceu comigo. Aprendi a ler e a escrever muito cedo e ficava lendo e criando histórias que mais tarde passava para o papel. Então, se tivesse que te dar dois fatos que me levaram a escrever, estes seriam, meu nascimento (rs) e meu precoce aprendizado da leitura. Lembro-me de que, quando ainda acreditava em Papai Noel, eu escrevia cartas com destino “céu” todos os anos. Num destes anos, eu deveria estar com cinco ou seis anos de idade, meu pai enviou a carta a um jornal e eu acabei sendo entrevistada, recebendo prêmios e etc. Só para te ilustrar o quão intrínsecas me estão a leitura e a escrita.


EntreGêneros:  Quando começou a escrever? Em que fontes literárias e/ou artísticas buscou sua inspiração?


CS: Acho que já respondi parte desta pergunta acima. Tudo para mim servia (e serve) de motivo para escrever. E é interessante, porque eu também toco instrumentos musicais e houve uma fase minha em que pintava muito. Estas três formas de expressão- verbal, musical e plástica – se misturavam e ainda se misturam no que escrevo. Tinha meus autores preferidos, meus artistas plásticos favoritos e a música o tempo inteiro a reboque.  Estas três artes foram importantíssimas no meu processo literário, se é que eu posso chamar assim. Há coisas que vi, ouvi ou li há muitos anos que ainda transpassam no que eu escrevo e eu mesmo me assusto, quando vejo que a fonte do que escrevi advém de algo tão antigo, quanto o meu envolvimento com as artes plásticas e a música.


EntreGêneros: O que a levou a sair de seu país de origem (Brasil) e ir viver num país estrangeiro (Estados Unidos)?


CS: Eu saí do Brasil para fazer outra residência médica nos EUA.  Já havia feito residência médica e especialização no Brasil, quando veio o pensamento e a oportunidade de fazer de novo isto aqui, nos Estados Unidos. E foi muito bom. Tive a chance de observar como a mesma coisa é vista, encarada, lidada de formas tão distintas. Minha bagagem brasileira me ajudou muito a ver e tornar diferente a maneira de me relacionar com a Medicina aqui.  Isto me auxilia até hoje. A gente é muito mais amistosa e tem muito menos temor de lidar com o paciente num nível mais emocional. É interessante como nós tocamos muito mais os pacientes com as nossas mãos do que os anglo-saxões. Isto foi complicado no início, por causa de toda esta coisa de ‘invasão de privacidade’ que é muito vigente aqui, especialmente, considerando-se o quão litigioso são os EUA.
Quando terminei minha residência médica aqui, fui convidada a ficar para trabalhar como médica e professora de Medicina da Universidade do Arizona. Então fui ficando, ficando e fiquei (rs).


EntreGêneros:  Conte-nos um pouco como foi seu processo de adaptação à esse país? 


CS: Foi difícil me adaptar. A minha sorte foi que eu estava tão envolvida com o trabalho, que esta adaptação teve que ocorrer e ocorrer rapidamente, caso contrário, não aguentaria. A sociedade aqui é muito prática, “business-oriented,” menos dada ao lúdico. Falo isto sem tentar estereotipar, é só como realmente vejo isto aqui. Como sempre, há coisas muito legais, por exemplo, todo o apoio às Sociedades de Proteção Animal (isto me veio à cabeça agora, porque sou vegetariana e profundamente engajada nesta luta), a possibilidade de você reclamar de algo errado e poder ver efetivamente alguma coisa ser feita a respeito. Há coisas não tão legais como a discriminação, o “racial profiling” (aqui no Arizona, onde moro, existe uma “perseguição racial” contra latinos, todo mundo é supostamente ilegal, até provar o contrário), o extremo ufanismo que não permite que vejam coisas obviamente ruins na sociedade americana. Então, a adaptação foi complicada, mas o trabalho ajudou muito. Sinceramente, não sei se me adaptaria se não tivesse sido assim.
Eu tentei voltar ao Brasil depois de dez anos de América. Passei dois anos no Rio, mas não consegui me adaptar mais profissionalmente aí. Infelizmente.  Foi um baque chegar a tal conclusão, mas também foi inevitável ter que aceitar isto. Daí retornei.


EntreGêneros: O fato de morar em outro país exerce alguma influência em seus textos? Você pretende editar um livro direcionado ao leitor americano?


CS: Sem dúvida. Especialmente meus textos em prosa poética, tal como TÉDIO, INSÔNIA e outros mais mostram muito esta influência. Toda esta dificuldade de identificação emocional com o que está a volta, encontra-se muito presente. E para complicar a coisa, eu moro num deserto, com cacto e etc, então muitas vezes a barra emocional foi (e é) imensa.
Sim, se não estiver sonhando alto demais. Eu venho reescrevendo muita poesia, prosa poética em inglês. Tenho alguns contos que foram inicialmente escritos em inglês e que depois transpus para o português. Mas é isto, reescrever, não necessariamente traduzir.  Talvez, quando esta idéia estiver mais amadurecida, possa juntar tudo num livro em inglês e sair enviando para diversas editoras para ver se alguém se interessa. Mas não tenho ilusões a respeito. Sei que é difícil, mas não pretendo tomar pessoalmente.


EntreGêneros: Como você vê a sua poesia em relação à sua profissão de médica?



CS: A poesia me salva todos os dias. É minha médica, me trata, me acolhe.  A poesia é a minha medicina, para que eu possa levar um pouco de poesia a minha arte médica.  Já não sei bem como faria Medicina se a poesia não estivesse em minha vida. Acho que não resistiria, que ficaria doente, também.  Infelizmente, a arte médica, que era mesmo uma arte, está sendo dilapidada mais em mais, deixando de ser arte, para se tornar mais instrumento de poder, vaidade e interesses que não são os do paciente, mas o da sociedade capitalista como um todo. Especialmente aqui, nos EUA. Então, ter a poesia na minha vida ainda me  faz apreciar uma história médica bem colhida, um bom exame físico (o que aqui é raro de se ver) feito e hipóteses diagnósticas a serem aventadas, antes de se sair pedindo todos os testes ancilares da face da Terra (o que também é muito comum aqui, até pelo caráter defensivo e litigioso da sociedade americana). Por outro lado, a Medicina colore muitos dos meus versos. Então Poesia e Medicina estão misturadas, fundidas na minha vida. Uma, é a profissão que tenho, a outra o que me torna emocionalmente capaz de praticar esta profissão.


EntreGêneros: Você se sente influenciada pelas artes em geral na composição de seus textos?


CS: Sim e muito, vide a minha primeira resposta. Não é incomum que eu esteja ouvindo ou tocando alguma coisa e, de repente, venha a idéia, a base para um texto. Da mesma forma que às vezes, estou escrevendo, uma canção me vem à cabeça e lá vou eu para o piano.
Acho impossível olhar, apreciar uma obra de arte sem que a poesia me venha à cabeça. Já escrevi vários poemas para obras de arte, especialmente pintura. Não sei como acontece, porque acontece, mas me vejo assim pintando letras com as cores do artista. Acho que também esta mistura de artes ocorre, porque há mistura de sentidos. Sou muito sinestésica e acho que é inevitável  a presença da referência às outras artes naquilo que escrevo.


EntreGêneros: Você sente alguma diferença em seus textos em prosa (contos) e seus poemas? 


CS: Sim. Há toda uma diferença. Tem textos que eu escrevo que sei serem poemas, mas que não cabem na estrutura de verso tradicional, daí saem sob a forma de prosa poética. Estou juntando um destes textos a esta entrevista para ilustrar melhor, chama-se O SILÊNCIO PASSA POR MIM.
Há épocas em que, não sei a razão, só consigo escrever poemas e prosa poética. Outras épocas, quando só consigo escrever prosa – contos e crônicas. Estes ciclos se repetem desde que me entendo por gente. Observo que algumas coisas são capazes de desencadear um gênero ou outro, mas o motivo pelo qual ocorre em ciclos, não sei explicar.


EntreGêneros: Em qual estilo se sente mais à vontade e qual lhe é mais prazeiroso?


CS: Todos os gêneros são igualmente prazeirosos. Se estou na fase de escrever poemas, escrevê-los me traz imenso prazer. O mesmo, se estou na fase de prosa. Fica difícil é quando eu não respeito estes meus tempos, estas minhas fases e forço uma coisa na outra. Não sai legal, não me sinto bem e o resultado é geralmente o lixo.  Aliás, eu escrevo muito, mas muito mesmo. Mas noventa por cento do que escrevo eu jogo fora. Cinco por cento eu guardo e cinco por cento eu mostro.


EntreGêneros: Considera seus textos intimistas? O quanto mostra de si mesma no que escreve?


CS: Olha, eu tenho muitos textos intimistas, destes começados na primeira pessoa. Mas acho que são intimistas, mas não confessionais.  Eles mostram pedacinhos do que eu sou, minha ótica emocional, mas não necessariamente, totalmente, a minha pessoa. Eu vejo muito isto nos meus textos em prosa, onde vários são escritos na primeira pessoa. Mas esta primeira pessoa é uma personagem de mim mesma. Algo em mim que hipertrofio e transformo em personagem. Ou não. Há textos também narrados em primeira pessoa e esta primeira pessoa tem pouco a ver comigo, nasceu da observação de outrem. Nem por isto acho estes textos menos verdadeiros. Até porque há tantas pessoas fascinantes no mundo a nos inspirar…
Tenho também muitos poemas e haicais absolutamente não intimistas e dos quais eu gosto muito. Há muitos poetas que não gostam da coisa mais intimista. Se é que posso me considerar poeta, eu acho que a beleza, a imagética e a plasticidade verbal vão além de o texto estar ou não na primeira pessoa.


EntreGêneros: Através do processo da escrita, o escritor interrompe o silêncio, representado pelo branco da folha de papel (ou da tela do computador). Esse silêncio lhe causa incômodo? Alguma vez já sentiu um bloqueio na hora de escrever? Como lida com esses momentos quando acontecem?


CS: Não. Este silêncio para mim é fundamental, é hora de recarregar, de contemplar e refletir. Acho que todo mundo tem estes “bloqueios…” Ou não? Não sei. Eu sei que eu os tenho. Mesmo escrevendo muito, há dias em que a coisa não sai. E não adianta forçar, pelo menos para mim. Tenho mesmo é que contemplar. Até que em meio à contemplação, sou “caçada” por uma palavra e desta caça volta novamente a produção. Da mesma forma que para mim a contemplação é importante, é necessário que esteja realmente imersa nela para ser capaz de ser “caçada” por uma palavra. Quando uma palavra me caça, eu saio da contemplação e as coisas voltam a fluir. Acho que é mesmo isto de se estar em sintonia com si próprio, capaz de intuir o momento de parar e o momento de recomeçar. Quando se consegue isto, tudo acha seu tempo.


EntreGêneros: Você tem um livro de poemas editado pela Editora Vidráguas, “UNS POUCOS VERSOS”. Você sentiu dificuldades para editar seu livro?


CS: Sim. As editoras maiores não estão olhando para novos autores. Demoram meses e meses para te darem uma resposta e na maioria das vezes esta resposta nem vem. Envia-se material para ‘n’ lugares diferentes e a dificuldade é a mesma. É aí que entra o papel das redes sociais, dos blogs, das revistas literárias online. A tecnologia é uma coisa muito bacana, porque está propiciando a abertura de um novo caminho (ia dizer mercado, mas não é bem mercado), de uma nova vereda por onde a literatura pode fluir, achar uma foz. Isto é muito legal. Especialmente para autores que estão começando ou que estão na batalha já há algum tempo sem muito retorno no caminho convencional. Acho que esta possibilidade tecnológica abriu um mundo novo não só para a literatura, mas para as artes de uma forma geral.
Eu creio que vamos estar vendo muitos e-books num futuro próximo e que uma boa leva de escritores que está iniciando irá se lançar desta forma. O “UNS POUCOS VERSOS” também terá uma versão e-book, em breve.


EntreGêneros: Fale-nos um pouco sobre a pessoa além da poeta: seus sonhos, seus projetos, sua profissão, sua vida.


CS: Esta talvez seja a pergunta mais difícil de todas. Difícil de responder sem cair no estereótipo. Acho que eu quero o que a maioria quer: poder viajar, ter um pouco de dinheiro para não depender, conhecer novas pessoas etc, etc. Mas creio que o que realmente estou atrás é de mim mesma. Esta pessoa que me revela tantas faces diferentes diariamente. Estou atrás de me ter, o mais inteiramente possível, o mais profundamente possível. Como todas as minhas dicotomias e contradições, todos os meus desejos e perdões. E aí, quando estiver mais perto disto, expressar-me como um todo, através de qualquer arte. Seja a arte tradicionalmente chamada arte, mas também a arte de ser inteiro no que fizer, na minha vida, na medicina, no mundo. Porque, quando nós conseguimos nos ter e nos expressar por inteiro, estamos fazendo arte. Seja ela qual for, mesmo que não seja arte no conceito da palavra.

Lançamento do livro de Cristina DeSouza "Uns Poucos Versos"

Beto Palaio, Cristina DeSouza, Ianê Mello e Elsa Marinha Cunha

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CRISTINA DESOUZA - Poesias

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